Reunir, juntar, celebrar. Trata-se de montar uma unidade discursiva com uma multiplicidade que é de natureza performativa – seja documental ou plástica e visual, por via de um corpus de trabalho revisitado, perfazendo três décadas de prática artística e investigação. Reunir em exposição o trabalho de João Garcia Miguel implicou fazer uma arqueologia de relações, de tempos e de formas. Foi um projeto feito de encontros, de vários olhares e pela mão de várias pessoas. Tratou-se de fazer discursar – os objetos, relações tempos e formas, numa linguagem sua – compreendê-los como atos de fala que fazem mundos e coisas acontecer noutros mundos, e que são próprios, modos e funções dos corpos.
Inauguração JAN SEX 22, 21h00
Visitas guiadas à exposição antes dos espetáculos, às 21h30
SEX 29 JAN | SÁB 13 FEV | SEX 26 FEV | SEX 4 MAR | QUI 24 MAR
Como fazer coisas com os corpos? O que é um corpo, ou o que pode um corpo? Regressamos de novo a Espinosa, sempre. Sempre as velocidades, as relações, os afectos. Por um lado, um corpo, por muito pequeno que seja, comporta sempre uma infinidade de partículas: essas são as relações de repouso e movimento, de velocidades e lentidão entre partículas, que definem um corpo, a individualidade de um corpo. Por outro lado, um corpo afeca outros corpos: é esse poder de afetar e de ser afetado que define um corpo na sua individualidade. O corpo, os corpos, constituem-se em relação, na sua capacidade de afetar e de ser afetados de ligação. E como se operam as ligações? Onde e o que liga? O desejo opera o agenciamento, o desejo cria todas as formas, e que desejo? O desejo da própria forma para além de si mesma, ou o devir de si sempre como outro. Ou o que se pode fazer com os corpos. João Garcia Miguel chama-lhe o inconsciente. Fazendo do seu trabalho, uma investigação prática, do inconsciente que se faz forma.
Vemo-la atravessar toda a sua obra visual, desde o momento em que camada sobre camada, em colagens, rasgagens e desenhos, trabalha a superfície dos papéis numa lógica sedimentar. A sobreposição criada é sujeita a uma torção - articulada com uma escavação, um fissurar e um desvelamento. Para que se veja, depois de tudo, o que está por baixo, ou a transparência, ou que se mostra (revelando ou voltando a cobrir de forma e sentido para mostrar) num acaso, da impressão das superfícies ou cristalização da matéria.
O processo é semelhante ao da metodologia de encenação e da construção cénica, ao do trabalho dos textos, sempre, ao longo destes trinta anos: um conjurar de energias e com elas de um caos ( ou a crueldade Artaudiana) ou um excesso por referência ao possível: o risco é o do mergulho em apneia a uma profundidade onde o sentido escasseia para, no limite da sobrevivência dos corpos, do mundo no sentido ordenado (quotidiano, mundo, etc.) se abrir, sempre, num vitalismo quase cruel, uma nova ligação: operar uma teleplastia. E dessa, e por via dessa, se fazer um novo corpo, novos corpos-espaços: fazer as coisas que os corpos podem.
A teleplastia é a teoria afectiva da evolução: como o definiu Roger Callois em 1935, no seu “Sobre o Mimetismo Animal”. Aqui, o que move cada ser vivo na suas relação com o meio envolvente não é mais a economia mecânica da sobrevivência da espécie por selecção natural, mas antes o que chamará de “luxúria do espaço” – um excesso, uma an-economia que se manifesta no ser vivo por uma vontade própria da matéria viva de querer, antes de tudo, devir-espaço. Caillois chamou tal capacidade, ou desejo, de “teleplastia.” Potencialmente disponível a toda matéria viva, ela é então activada em maior ou menor grau por cada organismo vivo complexo, de tal maneira que, por vezes, a possibilidade de se distinguir entre um ser vivo e o mundo circundante é reduzida a um quase nada. Ora a Caillois interessa-lhe perceber de que modo, aquilo que o mimetismo alcança morfologicamente ao nível das espécies animais, tem paralelo exato no psiquismo, que define como um fenómeno de “despessoalização por assimilação ao espaço” . Esse espaço, das ligações e desejo, o inconsciente plástico, é a imanência construtiva e intensa, do que João Garcia Miguel chama o inconsciente.
O seu trabalho, que é uma arte prática : plástica, visual, de encenação e investigação numa metodologia aplicada a várias vertentes, ou às áreas, procura aproximar, reduzir a um quase nada os corpos e o mundo, para deles fazer outros. Outros corpos e outros mundos, despessoalizados, assimilados ao espaço dos eventos/acontecimentos: campos dinâmicos de forças, ligações produtivas, em devir. O evento desfaz a acepção da mente em relação ao tempo, mostrando a experiencia como um relação aberta e excessiva em relação à sua própria representação. Este excesso temporal ou incompletude, uma certa intempestividade que acompanha sempre as ocorrências, desfaz a privatização e a subjectivação da experiencia. O que é cada vez novo é a singularidade na qual o evento excede os limites do pensamento representativo, e permanece, na sua ocorrência, sem essência . Uma vida de ordem maior. Lisboa, Junho 2015.